*Marcia Camargos
Há mais de um ano assistimos, ao vivo e em cores, ao maior genocídio do século XXI. Se as televisões convencionais, ligadas ao status quo, recusam-se a exibir as cenas dramáticas, basta sintonizarmos a Al-Jazeera para seguirmos, em tempo real, a carnificina sendo praticada bem diante dos nossos olhos. Verdadeira prisão a céu aberto há décadas, Gaza tem atraído a fúria vingativa dos líderes israelenses que, inspirados em seus algozes nazistas, massacram a população civil, com um saldo superior a cem mil mortos. Frente à selvageria, as mobilizações multiplicaram-se ao redor do planeta. No entanto, elas não conseguiram produzir o menor efeito no apetite de Netanyahu, disposto a dizimar a população local para apoderar-se da Palestina, do Jordão ao mar.
Em Paris, logo após o 8 de Outubro, gigantescas faixas pendiam de cada uma dos edificios das prefeituras da cidade, com os dizeres: “Hamas, devolva nossos cidadãos, sem qualquer contrapartida”. Nenhuma palavra, obviamente, condenando a chacina, por parte das autoridades que não hesitaram em engrossar a marcha de 10 de novembro de 2023, contra o “anti-semitismo”- pecha que procuram colar nos antissionistas, nos que denunciam as infindáveis violações dos direitos humanos naquela conturbada região do globo terrestre. Contando com o aparelho de governo, o cortejo direitista atraiu cerca de 100 mil pessoas, número nunca ultrapassado pelos atos pró-Palestina. Estes repetiam-se a cada sábado, fizesse sol ou chuva, em geral na icônica Place de la République, convocados pelos partidos de esquerda, sindicatos e por organizações como a Urgence Palestine. Proibidos logo no início, foram aos poucos sendo liberados, mas nunca alcançaram a amplitude dos que ocorreram na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, mesmo levando-se em conta o expressivo contigente muçulmano no país. Para se ter uma ideia, no censo de 2022, eles somavam quase oito milhões, perfazendo cerca de 10% da população francesa. Essa comunidade islâmica, composta em sua grande parte por árabes, certamente solidariza-se com os irmãos palestinos, mas não desceu maciçamente às ruas para expressar tal apoio. O motivo talvez resida na estigmatização, numa sociedade racista, cujo Estado policialesco tende a enxergar qualquer atitude deles nesse sentido como apologia ao terrorismo.
Uma no cravo, outra na ferradura
No âmbito estudantil, por sua vez, houve a ocupação, pró-Gaza, da Faculdade SciencesPo, um instituto de ciências politicas da elite francesa e internacional. Fazendo eco os colegas das academias de Columbia e de Nova Iorque, em 12 de março de 2024, 300 universitários tomaram o anfiteatro da prestigiosa instituição. Tempos depois, em 24 de abril, algumas dezenas deles acamparam nos jardins do campus, exigindo a revisão de acordos acadêmicos e científicos com o Estado judaico e a suspensão de punições disciplinares contra os alunos que defendem a causa. A acão teve efeito simbólico, mas pouco durou. Naquela madrugada acabaram desalojados pelas tropas de choque.
Agora em 2025, quando repentinos ataques vinham quebrar o cessar-fogo, eles de novo ali protestaram, sendo rapidamente reprimidos e expulsos. Na ocasião, Macron, que se indignou com um ataque russo que matou 18 na Ucrânia, a maioria crianças, calou-se de em relação ao letal bombardeio sionista de 18 de março, trucidando 1200 civis, dos quais 320 eram menores de idade. Nada a comentar sobre o ensurdecedor silêncio presidencial, pois sabemos que vidas brancas europeias valem mais do que vidas árabe-palestinas…
Como se não bastasse, Macron repetiu a falta de empatia, em flagrante delito, ao permitr que o avião do primeiro-ministro de Israel usasse seu espaço aéreo, no dia 6 de abril. Contando com o beneplácito do mandatário do Hexágono, o carrasco de Gaza, na viagem a Washington para reunir-se com seu cúmplice e financiador-mor, passou tranquilamente sobre os territórios francês e italiano. Ele prefriu um sobrevôo mais extenso, para evitar as regiões dos Países Baixos, da Irlanda e da Islândia, onde correria o risco de ser detido em caso de pouso de emergência. Assim, ao concordar com a rota da aeronave, Macron ignorou o mandato de prisão emitido pela Corte Penal Internacional, em patente violação às obrigações jurídicas na sua qualidade de signatário do Estatuto de Roma, segundo afirmou o presidente da CPI, Patrick Zahnd, em carta de reprimenda ao inquilino do Eliseu. Há poucos dias, porém, decerto temeroso de passar à posteridade como mais um adulador que faz vista grossa a crimes contra a humanidade, e manchar sua reputação, Macron deu uma guinada para salvar as aparências. De retorno do Egito, onde aterrisou a 6 de abril para uma visita de 48 horas, ele anunciou à imprensa que poderia reconhecer o Estado Palestino, vindo somar-se ao bloco dos 147. Ainda que utilizando o verbo no condicional, chegou, inclusive, a marcar a decisão para junho, no âmbito de uma conferência nas Nações Unidas, coordenada pelo seu país e a Arábia Saudita. A declaração suscitou a ira da direita e do próprio exterminador, que a definiu como « erro grave ». Contudo, dado o comportamento de Emmanuel vis a vis o assunto, aconselha-se dosar as expectativas, assumindo a postura cautelosa de ver para crer. Não tenhamos ilusões : na entrevista de quase quatro horas para o canal TF1, intitulada « Os desafios da França », no último 13 de maio, confrontado com insistência do apresentador, ele gaguejou, mas se recusou de modo irredutível a confirmar que se trata de genocídio: « Não cabe a mim fazer tal afimação, esse é um trabalho para os historiadores ».
Verniz humanitário
Ao longo desse ano e meio de barbárie, sem alarde, as faixas anti-Hamas desapareceram das prefeituras parisienses, numa prova silenciosa de que Israel perdeu a guerra moral. Os protestos prosseguem, embora diluídos, e dividindo atenção e espaço com outros pontos da agenda de reivindicações trabalhistas, partidárias e antifascistas. Sim, porque também na França a extrema-direita agressiva e violenta tem colocado as garras de fora sem pudor, em que pese a recente condenação da sua chefe, Marine Le Pen, deputada pelo Rassemblement National. Na extremidade oposta do arco ideológico, Jean-Luc Melénchon, cabeça da France Insoumise, e principal articulador da Nova Frente Popular, reunindo as esquerdas, tem sido uma das vozes mais potentes contra a indiferença generalizada diante da limpeza étnica. Não por acaso, tornou-se alvo de uma campanha difamatória, que o taxa de antissemita. Os outros partidos também marcaram presença, sendo que a questão palestina conquistou uma inequívoca perenidade, com suas bandeiras quadricolores tremulando em qualquer tipo de manifestação, seja por melhores salários, aposentadoria digna, contra o feminicídio ou até no Dia Internacional da Mulher.
Entretanto, como se constatou no decorrer desses meses todos, o leque da esquerda não se mostrou à altura da urgência do momento, sem debater o tema em profundidade, nem tirar uma estratégia comum de luta. Assim, na França, a solidariedade internacional ficou muito aquém do esperado da nação que realizou a seminal revolução popular do dito Ocidente. Pior: a sua quase paralisia deixou caminho livre para Macron cerrar fileiras com os usrupadores, em sintonia com os interesses da classe dominante, que representa. Na outra ponta, os sindicatos não estão unidos para impedir o envio de munição ao placo da matança, mesmo lembrando que a parcela de contribuição francesa no abastecimento do exército sionista seja pouco significativa.
Como explicar tal cenário? Para alguns militantes, os melenchonistas não souberam fazer um balanço sério do problema. Prisioneiros de uma lógica do sistema neoliberal, revelaram-se incapazes de construir uma alternativa eficaz para fazer avançar a causa. Na opinião de Alexis, dirigente da Liga Trotskysta, para que o movimento pró-Palestina possa progredir, será necessário golpear os imperialistas daqui e d’além-mar:
“Não será dando um verniz humanitário de fachada a seus agentes, seja nas universidades, na administração pública ou entre os representantes políticos, que as coisas vão mudar”. Para ele, o combate precisa ser travado no escopo abrangente da luta de classes, numa ruptura radical com o liberalismo.
“A escalada genocida vai persistir enquanto não houver um efetivo desafio do conjunto dos trabalhadores à ordem imperialista, que arma Israel até os dentes”.
*Escritora e jornalista, com pós-doutorados pela USP e pela Sorbonne Université, Marcia Camargos mora em
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