Necessidade de rigor acadêmico na solidariedade à Palestina: Uma resposta às contradições e chavões midiáticos da nota de mais de duzentos docentes da USP sobre o genocídio em Gaza

por | out 9, 2025 | palestina | 0 Comentários

No dia 11 de setembro, foi divulgada uma nota assinada pelas professoras e professores da Universidade de São Paulo sob o título “Pelo cessar-fogo e pela desocupação militar imediata da Faixa de Gaza”1. Embora reconheçamos a intenção dos docentes de se posicionarem contra o genocídio em curso, o texto incorre em contradições sérias, empregando termos equivocados e reproduzindo narrativas parciais, que acabam por fragilizar a própria solidariedade que afirma defender.

Enquanto a nota afirma reconhecer que “no que toca à guerra de Gaza, com certeza essa história não começa nessa data”, ela apresenta o 7 de outubro como “o estopim” do genocídio — uma contradição que esvazia a historicidade do processo colonial e legitima uma falsa narrativa de “autodefesa” israelense. Ao criticar o governo Netanyahu, restringe essa responsabilidade a um governo específico. Ignora, porém, que o que está em curso é um projeto estrutural de colonização, apartheid e limpeza étnica.

O texto reproduz, de forma quase literal, os três principais argumentos-chave usados por Israel para justificar seu genocídio, isso é:

  1. O ataque de 7 de outubro teria tido como alvo apenas civis O texto afirma que “1.200 participantes de um Festival de Música e moradores dos Kibutzim em Israel” foram mortos. Isso não corresponde à totalidade dos fatos. Segundo dados atualizados do próprio governo israelense, das cerca de 1.200 mortes registradas, 766 eram civis, 305 soldados, 58 policiais e 10 agentes do Shin Bet2. Ou seja, cerca de um terço das mortes era composta por forças de segurança ou militares. Entre os alvos principais do 7 de outubro estavam o campo militar de Re’im3 (quartelgeneral da divisão de Gaza) a base militar de Zikim4, assim como os postos do exército em Sufa5, Paga6 e Nahel Oz7. Também foram alvos do ataque os postos de controle militar/portões de barreira de Erez, Kerem Shalom8 e Kissufim9, responsáveis por garantir o muro do apartheid e cerco militar em torno da Faixa. Outra parte dos civis mortos decorreram da chamada “Diretriz Hannibal”10, pela qual o exército israelense abriu fogo indiscriminado contra sua própria população para evitar sequestros. Reduzir o episódio a um ataque contra civis e um festival de música distorce a realidade.
  2. O 7 de outubro seria o “estopim” do genocídio.
    1. nota descreve o ataque como “o estopim para a imediata retaliação militar do governo Netanyahu”. Essa formulação ignora que o massacre em Gaza não começou em outubro de 2023, mas faz parte de um processo sistemático de colonização, apartheid e limpeza étnica que já dura mais de 75 anos. Entre 1º de janeiro e 6 de outubro de 2023, 208 palestinos (incluindo 42 crianças) foram mortos por Israel na Cisjordânia e Jerusalém Oriental11. No período imediato antes do 7 de outubro de 2023, os palestinos atravessaram massacres em Jenin e Nablus, registrando-se o maior número de mortos na Cisjordânia em quase duas décadas12. Não obstante reconhecerem em outro momento que “essa história não começa nessa data”, os signatários acabam em contradição: como afirmar que a reação palestina foi o estopim e, ao mesmo tempo, admitir que a guerra não começa agora?
  3. O Hamas seria reduzido a um “grupo terrorista”.
    1. nota repete a linguagem da “Guerra ao Terror” de Israel, dos Estados Unidos e de seus aliados mais próximos ao classificar o Hamas como “grupo terrorista”. O Hamas é parte de um movimento de resistência anticolonial com mais de cem anos de existência na Palestina, ao lado de outros partidos nacionalistas reunidos na Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Fundado em 1987, o partido é derivado da Irmandade Muçulmana, presente na cidade de Gaza desde 1935. A organização mantém relações diplomáticas com diversos países árabes e islâmicos. Nem a ONU nem o Estado brasileiro o declararam como “grupo terrorista”. Ambos reconhecem o direito dos palestinos à autodeterminação, inclusive “por todos os meios disponíveis, incluindo a luta armada”13. A própria diplomacia brasileira se preocupa em não confundir uma organização política, com representação no Conselho Legislativo Palestino e uma ampla rede de serviços sociais e de caridade atendendo 2,2 milhões de pessoas, com grupos jihadistas terroristas como a Al Qaeda e o Estado Islâmico. Embora certos atos do Hamas em 7 de outubro possam ser caracterizados como “crimes de guerra”14, reduzi-lo a um “grupo terrorista” repete a narrativa israelense que silencia o debate sobre ocupação e apartheid, legitima ataques contra civis em Gaza e criminaliza toda forma de resistência palestina, seja armada ou pacífica.

Mesmo afirmando reconhecer o “sofrimento interminável” do povo palestino, a nota dos docentes da USP reduz a responsabilidade ao governo de extrema-direita de Benjamin Netanyahu, apagando o caráter estrutural do projeto sionista: um regime de colonização e limpeza étnica em curso há mais de sete décadas. O texto incorre em contradição ao tentar mostrar “empatia” pelas vítimas, ao mesmo tempo em que isenta o sionismo, seu regime e sua ideologia da responsabilidade histórica pela criação de uma suposta “democracia étnica-nacional”. O resultado é a perpetuação de uma sociedade supremacista, que hoje se vê alarmada pela contestação internacional de sua política de apartheid.

Cabe destacar, ainda, que o Estado brasileiro exige não apenas a “desocupação militar imediata da Faixa de Gaza”, mas também de Jerusalém Oriental e da Cisjordânia, como pontuado nos títulos de seus próprios documentos oficiais15. A nota dos docentes ignora a tradição diplomática brasileira ao se opor exclusivamente à ocupação na Faixa de Gaza.

É especialmente preocupante que distorções como essas venham da academia, conferindo legitimidade acadêmica a narrativas que apagam a produção intelectual palestina e silenciam o escolasticído em curso, incluindo a destruição sistemática de universidades, bibliotecas e escolas em Gaza. Ignorar que professores, estudantes e pesquisadores palestinos têm sido alvo direto é um grave equívoco.

A nota tampouco aborda a cumplicidade internacional com o genocídio: Estados Unidos e União Europeia seguem financiando Israel, enquanto países como o Brasil mantêm relações comerciais e militares que contribuem para a continuidade da violência. Esperar apenas um cessar-fogo e desocupação militar parcial dos territórios palestinos ocupados, sem apontar para a necessidade do fim da cumplicidade ativa de governos é insuficiente. Mais ainda quando falamos de professores da Universidade de São Paulo, que poderiam começar por cobrar o rompimento de convênios acadêmicos da USP com instituições ligadas ao regime de ocupação.

Diante de quase dois anos de genocídio transmitido diariamente, esperamos da comunidade acadêmica brasileira maior rigor histórico, político e jurídico — não a repetição de chavões midiáticos. Nossa crítica não busca deslegitimar a intenção de solidariedade, mas fortalecer a necessidade de uma posição que reconheça o direito do povo palestino à resistência e a urgência de romper a cumplicidade internacional.

Só assim será possível que a solidariedade acadêmica cumpra seu papel: não o de normalizar a destruição de um povo, mas de se somar, com clareza e firmeza, à luta por sua libertação.

Assinam:

Diretório Central dos Estudantes Alexandre Vannucchi Leme – DCE Livre da USP

Rede Universitária em Solidariedade ao Povo Palestino

SINTUSP – Sindicato dos Trabalhadores da USP

  1. Pelo cessar-fogo e pela desocupação militar imediata da Faixa de Gaza. Le Monde Diplomatique Brasil, 11 set. 2025. Disponível em: https://diplomatique.org.br/pelocessarfogoepeladesocupacaomilitarimediatadafaixadegaza/
  2. Israel social security data reveals true picture of Oct. 7 deaths. France24, 15 dez. 2023. Disponível em: https://www.france24.com/en/livenews/20231215israelsocialsecuritydatarevealstruepictureofoct7deaths; Ver também October 7. Al Jazeera Investigative Unit, 2024. Disponível em:

https://www.ajiunit.com/investigation/october-7

  • Entire Gaza Division was overrun for hours, and IDF didn’t know it; 767 troops faced 5,000 terrorists.

The Times of Israel, 27 fev. 2025. Disponível em: https://www.timesofisrael.com/767troopsfaced

5000terroristsgazadivisionwasoverrunforhoursidfoct7probe/

  • Single Company of Experienced IDF Soldiers Prevented Hamas From Taking Over Base on Oct. 7.

Haaretz, 27 abr. 2025. Disponível em: https://www.haaretz.com/israelnews/20250427/tyarticle/.premium/loneveteranidfcompanysavedzikimbasefromhamastakeoveronoct7armyprobefinds/000001967626dd54a7d6f72739390000

  • Tank crew that killed over 100 terrorists on October 7: ‘Everyone we saw, was eliminated’. Ynet

News, 27 abr. 2025. Disponível em: https://www.ynetnews.com/magazine/article/r1ngzurrgg

  • IAF eliminates Hamas Nukhba commander responsible for ‘Paga’ outpost attack on Oct. 7. The

Jerusalem Post, 11 dez. 2024. Disponível em: https://www.jpost.com/middleeast/article833006 7 ‘Strange to be here without them’: Soldiers who survived Oct. 7 return to Nahal Oz base. The Times of Israel, 25 fev. 2024. Disponível em: https://www.timesofisrael.com/strangetobeherewithoutthemsoldierswhosurvivedoct7returntonahalozbase/

  • How Hamas staged Israel lightning assault no-one thought possible. BBC News, 13 out. 2023.

Disponível em: https://www.bbc.com/news/worldmiddleeast67046750

https://www.aljazeera.com/news/longform/2023/12/12/know-their-names-palestinians-killed-by-israelin-the-occupied-west-bank-2

  1. Israel and Palestine: Events of 2023. Human Rights Watch, 2024. Disponível em:

https://www.hrw.org/world-report/2024/country-chapters/israel-and-palestine

  1. Ver, por exemplo, Resolução 38/17 de 1983 sobre a Questão Palestina, Assembleia Geral da

ONU. Disponível em: https://docs.un.org/es/A/RES/38/17

  1. Segundo relatório da Human RIghts Watch, “mera participação nos ataques do 7 de outubro não são uma violação do direito humanitário internacional”. A organização de direitos humanos destaca que a brigada “Mártir Abu Ali Mustafa” associada à Frente Popular pela Libertação da Palestina (PFLP), que participou apenas de operações militares no ataque de 7 de outubro, não cometeu violações ou abusos da lei de guerra. Ver Israel and Palestine: Events of 2023. Human Rights Watch,

2024. Disponível em: https://www.hrw.org/worldreport/2024/countrychapters/israelandpalestine

15 Ver Tribunal Internacional de Justiça, Consequências Jurídicas decorrentes das Políticas e Práticas de Israel no Território Palestino Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental. Declaração Escrita da República Federativa do Brasil, julho de 2024. https://www.icjcij.org/sites/default/files/caserelated/186/18620230725wri1700en.pdf

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